TRECHO DO LIVRO: de Leitura : Teoria e Prática de Angela Kleiman - 9ª edição, Campinas, SP: Pontes. 2002


(...) acreditamos, como Vygotsky e pedagogos neovygotskianos, que a aprendizagem é construída na interação de sujeitos cooperativos que têm objetivos comuns. Como, no caso, trata-se de aprender a ler no sentido cabal da palavra (em que ler não é o equivalente a decifrar ou decodificar), a aprendizagem que se dará nessa interação consiste na leitura com compreensão. Isto implica que é na interação, isto é, na prática comunicativa em pequenos grupos, com o professor ou com seus pares, que é criado o contexto para que aquela criança que não entendeu o texto o entenda.
Uma vez que não encontraremos homogeneidade nessa interação devido aos diversos estágios de desenvolvimento dos alunos na sala de aula, interessa primordialmente ao professor determinar qual é o potencial de aprendizagem de uma criança, dado o desenvolvimento que ela já tem. A fim de que a criança possa aprender, adulto e criança, conjuntamente, deverão construir um contexto de aprendizagem mediante a interação, cabendo ao adulto definir tarefas exeqüíveis, plausíveis, e significativas, segundo objetivos pré-definidos em comum acordo. Ou seja, para construir um contexto de aprendizagem mediante a interação, o aluno deve conhecer a natureza da tarefa e deve estar plenamente convencido de sua importância e relevância.
Quanto à concepção de leitura pressuposta, consideramos esta uma prática social que remete a outros textos e outras leituras. Em outras palavras, ao lermos um texto, qualquer texto, colocamos em ação todo o nosso sistema de valores, crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nossa sociabilização primária, isto é, o grupo social em que fomos criados.
Como se reflete, na leitura, esse sistema de valores? Até que ponto ele interfere na aprendizagem? Numa tentativa de responder essa pergunta, tomemos. por exemplo, um caso concreto de leitura de  uma bula, observado numa aula de alfabetização de adultos. Como o exemplo a seguir mostrará, a bula, que é um texto que poderíamos considerar "apenas" informativo, e cuja leitura instrumental ou funcional figura nos programas de alfabetização de adultos por ser leitura indispensável a todo grupo social, está longe de representar "apenas" uma fonte de informações necessárias para o leitor. Isto porque a bula é um texto de divulgação de informação científica sobre o tratamento de uma doença que pressupõe, primeiro, que o leitor está inserido na cultura letrada que acredita na ciência como fonte de conhecimento e no texto escrito como forma de alcançar esse conhecimento, e, segundo, que ele acredita que a doença é objeto de análise e o tratamento dela, conseqüência da aplicação dos resultados e descobertas dessa análise.
Na aula observada do curso supletivo de alfabetização para adultos, a professora selecionara para leitura um texto que descrevia a utilidade de uma bula, bem como uma bula propriamente dita para exemplificar. Para a professora, a descrição das precauções representava um conjunto de informações de natureza vital, pois corria-se o risco, segundo ela, de "o doente piorar ou até morrer se o medicamento estivesse vencido, se a dosagem certa não fosse respeitada, se atenção não fosse prestada aos possíveis efeitos colaterais". A professora estava fazendo a leitura prevista pelo autor do texto sobre a bula que supõe, para tornar o texto inteligível, uma série de acordos subentendidos quanto ao tipo de audiência a quem está dirigindo. O escritor da bula pressupõe um leitor que vai ao médico, compra remédios na farmácia e aceita o saber médico como um saber autorizado para a cura de doenças. Durante a aula transpareceu, entretanto, que os alunos tinham mais fé nos benzedores e nos remédios tradicionais do que na farmacêutica, que tinham profunda desconfiança na classe médica e que consideravam a doença como uma fatalidade e, portanto, não sujeita à análise e ao conhecimento.
A série de acordos subentendidos que deve ser negociada entre o autor e o leitor previsto na leitura de uma bula sequer foram cogitados, uma vez que a atividade esbarrou no problema de valores sociais anterior. Por exemplo, existem acordos implícitos quanto às condições de leitura, pois a leitura da bula ocorre após a compra do remédio, que, no contexto brasileiro, prescinde de receita médica, apesar de a própria bula recomendar a "venda sob prescrição médica". A recomendação é inoportuna, tardia, equivalente a ter que pular na água do lago para poder ler o letreiro que adverte ser perigoso pular.
Em segundo lugar, existem subentendidos quanto à estrutura e forma do texto, como aquele que para poder ler uma bula é preciso ser um bom leitor e até possuir conhecimentos rudimentares de medicina ou ciência, pois as precauções são escritas com o uso de um léxico muito formal e construções intrincadas, diferentes das precauções do cotidiano, como em: Atenção: este produto é um novo medicamento e embora as pesquisas realizadas tenham indicado eficácia e segurança quando corretamente indicado, podem ocorrer reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas. Em caso de suspeita de reação adversa o médico responsável deve ser notificado.
No entanto, esses subentendidos decorrem de urna premissa básica anterior de que o uso de remédios farmacêuticos é um aspecto necessário, conveniente e aconselhável para o tratamento da doença. Tal como indicamos anteriormente, o acordo em relação a essa premissa fora pressuposto pela professora, que pertencia a uma classe social que vai ao médico, compra remédios na farmácia e segue as instruções para tomá-los. Entretanto, os alunos, que não foram sociabilizados nesse tipo de classe social, não partilhavam dessa crença, e a aula foi marcada por desentendimento e resistência. Quase no fim da aula, um jovem adolescente, catador de laranjas, tornou-se porta-voz de vários outros alunos, e explicitou sua oposição à premissa, defendendo remédios naturais e chamando os médicos de exploradores dos pobres; vários alunos se uniram a ele, contando casos de sucesso de remédios alternativos e de cura mediante benzedores, indicando com isso sua descrença absoluta na farmacêutica e na medicina.
Sem a explicitação e a discussão dessa premissa anterior, a série de ajustes que o leitor tem que fazer para "entender" a bula é impossível; o diálogo em busca de soluções comuns a problemas relevantes para o aluno fica prejudicado se o aluno não considerar a leitura desse tipo de texto relevante. Qualquer que fosse o objetivo da aula em relação à leitura, dificilmente teria sido atingido, uma vez que os aspectos sociais implícitos na leitura do texto não foram discutidos abertamente com o aluno.
Focalizamos neste trabalho a leitura como processo psicológico em que o leitor utiliza diversas estratégias baseadas no seu conhecimento lingüístico, sociocultural, enciclopédico. Tal utilização requer a mobilização e a interação de diversos níveis de conhecimento, o que exige operações cognitivas de ordem superior, inacessíveis à observação e demonstração, como a inferência, a evocação, a analogia, a síntese e a análise que, conjuntamente, abrangem o que antigamente era conhecido como faculdades, necessárias para levar a termo a leitura: a faculdade da linguagem, da compreensão, da memória. Nessa dimensão, justifica-se a observação de psicólogos educacionais como Carroll, que dizem que a leitura constitui o processo cognitivo por excelência.

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ESTRATÉGIAS DE LEITURA
Levando em conta as considerações tecidas no Capítulo I sobre a leitura enquanto ato individual, uma questão bastante pertinente em relação ao ensino da leitura diz respeito à viabilidade desse ensino. Em outras palavras, não seriam as tentativas de ensino da leitura incoerentes com a natureza da atividade, uma vez que a leitura é um ato individual de construção de significado num contexto que se configura mediante a interação entre autor e leitor, e que, portanto, será diferente, para cada leitor, dependendo de seus conhecimentos, interesses e objetivos do momento?
De fato essa tentativa seria incoerente se o ensino de leitura seguisse a prática escolar, tanto do professor como do livro didático, que privilegia uma leitura, a do professor, como a única leitura correta, autorizada. Essa orientação fica evidente na divisão que o livro didático faz entre "perguntas de compreensão" que, como apontamos anteriormente, na maior parte são perguntas sobre informação que aparece explicitamente no texto, e a "resposta pessoal", que parece ser o único momento, também controlado pelo autor do livro didático ou pelo professor, em que se prevê que o aluno chegue a uma opinião própria, isto é, se coloque como sujeito da leitura.
A tentativa NÃO é incoerente, entretanto, se o ensino de leitura for entendido como o ensino de ESTRATÉGIAS DE LEITURA, por uma parte, e como o desenvolvimento das habilidades lingüísticas que são características do bom leitor, por outra. Tanto estratégias como habilidades são necessárias, porém não suficientes, para realizar o ato de ler.
Quando falamos de ESTRATÉGIAS DE LEITURA, estamos falando de operações regulares para abordar o texto. Essas estratégias podem ser inferidas a partir da compreensão do texto, que por sua vez é inferida a partir do comportamento verbal e não verbal do leitor, isto é, do tipo de respostas que ele dá a perguntas sobre o texto, dos resumos que ele faz, de suas paráfrases, como também da maneira com que ele manipula o objeto, se sublinha, se apenas folheia sem se deter em parte alguma, se passa os olhos rapidamente e espera a próxima atividade começar, se relê.
As estratégias do leitor são classificadas em ESTRATÉGIAS COGNITIVAS e ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS. As ESTRATÉGIAS METACOGNITIVAS seriam aquelas operações (não regras), realizadas com algum objetivo em mente, sobre as quais temos controle consciente, no sentido de sermos capazes de dizer e explicar a nossa ação. Assim, se concordarmos com autores que dizem que as estratégias metacognitivas da leitura são, primeiro, autoavaliar constantemente a própria compreensão, e segundo, determinar um objetivo para a leitura, devemos entender que o leitor que tem controle consciente sobre essas duas operações saberá dizer quando ele não está entendendo um texto e saberá dizer para que ele está lendo um texto.
As atividades em que o leitor poderá se engajar quando ele não entender o texto são diversificadas e flexíveis, e constituem o indício do funcionamento de uma estratégia para conseguir mais eficiência na leitura, por exemplo, se o leitor perceber que não está entendendo, ele poderá voltar para trás e reler, ou poderá procurar o significado de uma palavra-chave que recorre no texto, ou poderá fazer um resumo do que leu, ou procurar um exemplo de um conceito. Enfim, dependendo do que ele detectar como causa, ele adotará diversas medidas para resolver o problema. Para a realização desses diversos comportamentos faz-se primeiro necessário que ele esteja ciente de sua falha na compreensão.
As ESTRATÉGIAS COGNITIVAS da leitura seriam aquelas operações inconscientes do leitor, no sentido de não ter chegado ainda ao nível consciente, que ele realiza para atingir algum objetivo de leitura. Por exemplo, o fatiamento sintático é uma operação necessária para a leitura, que o leitor realiza, ou não, rápida ou cuidadosamente, isto é, de diversas maneiras, dependendo das necessidades momentâneas, e que provavelmente não poderá descrever. Como apontávamos no capítulo anterior, o conhecimento utilizado para realizar a operação é também um conhecimento implícito, não verbalizado e que seria quase que impossível de verbalizar para a grande maioria dos falantes.
O processamento, que consiste, em grande parte, em procedimentos para os quais utilizamos conhecimento sobre o qual não temos reflexão nem controle consciente (esses procedimentos são de fato chamados também de automatismos da leitura) e, portanto, realizado estrategicamente e não através de regras.