Cultura e humanização


TEXTO 01 – ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da
Educação. SP: Moderna, 1997.
Cultura e humanização
Há muitos anos, nos Estados Unidos, Virgínia e Maryland assinaram um tratado de paz com os índios das Seis Nações. Ora, como as promessas e os símbolos da educação sempre foram muito adequados a momentos solenes como aquele, logo depois os seus governantes mandaram cartas aos índios para que enviassem alguns de seus jovens às escolas dos brancos. Os chefes responderam, agradecendo e recusando. A carta acabou conhecida porque alguns anos mais tarde Benjamim Franklin adotou o costume de divulgá-la aqui e ali. Eis o trecho que nos interessa:
“(...) Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e, sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia de educação não é a mesma que a nossa.
(...) Muitos dos nossos bravos guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores, ignorantes da vida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome. Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana, e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis. Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros. Ficamos
extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens, que lhes ensinaremos tudo o que sabemos e faremos, deles, homens”.
(Apud Carlos Rodrigues Brandão)
1. Noção de cultura
Na linguagem comum, o homem “culto” seria aquele que tem instrução, teve acesso à produção intelectual da civilização a que pertence (ciência, filosofia, literatura, artes em geral). Muitas vezes, só porque alguém conhece algumas línguas estrangeiras, imediatamente é considerado “culto”, da mesma forma que, se não freqüentou os bancos escolares, é classificado como “inculto”.
Ora, esse modo de pensar resulta da sociedade hierarquizada, que separa o trabalho humano em atividades intelectuais e manuais, valorizando as primeiras em detrimento das últimas. E isso justamente o que está em questão na epígrafe do capítulo: os homens da civilização americana consideram um bem universal o que oferecem em suas escolas e, como tal, desejam estendê-lo aos indígenas, sem perceber que nas tribos não existe ainda a separação entre o pensar e o agir. Trata-se de uma outra cultura.
Agora, portanto, passamos a usar a palavra cultura como o resultado de tudo o que o homem produz para construir sua existência. No sentido amplo, antropológico, cultura é tudo o que o homem faz, seja material ou espiritual, seja pensamento ou ação. A cultura exprime as variadas formas pelas quais os homens estabelecem relações entre si e com a natureza: como constroem abrigos para se proteger das intempéries, como organizam suas leis, costumes e punições, como se alimentam, casam e têm filhos, como concebem o sagrado e como se comportam diante da morte.
O contato do homem com a natureza, com outros homens e consigo mesmo é intermediado pelos símbolos, isto é, signos – arbitrários e convencionais –, por meio dos quais o homem representa o mundo. Portanto, ao criar um sistema de representações aceitas por todo o grupo social (ou seja, a linguagem simbólica), os homens se comunicam de forma cada vez mais elaborada.
Nesse sentido pode-se dizer que a cultura é o conjunto de símbolos elaborados por um povo em determinado tempo e lugar. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas são múltiplas e variadas.
2. O animal e a natureza
O animal vive em harmonia com a natureza. Isso significa que sua atividade é determinada por condições biológicas que lhe permitem adaptar-se ao meio em que vive, não sendo livre para agir em discrepância com a sua própria natureza, razão pela qual o comportamento de cada espécie animal é sempre idêntico.
Os insetos, por exemplo, que se situam nos níveis mais baixos de desenvolvimento dentro da escala zoológica, agem por reflexos e instintos e, por isso, sua atividade é a mais rígida possível. Essa rigidez dá a ilusão de perfeição quando observamos o animal executando determinados atos com extrema habilidade. Não há quem não veja com atenção e pasmo o “trabalho” paciente da aranha tecendo a teia, ou não tenha admirado a colméia, produto da abelha operaria.
Sendo a ação instintiva regida por leis biológicas, permanece idêntica na espécie e invariável de indivíduo para indivíduo. Por isso os atos dos animais não têm história, são os mesmos em todos os tempos, não se renovam, salvo as modificações resultantes da evolução das espécies e as decorrentes das modificações genéticas. Quando ocorrem tais mudanças, elas valem para todos os indivíduos da espécie, são transmitidas hereditariamente e não permitem inovações individuais. Mesmo as modificações que resultam de formas de adaptação ao ambiente são restritas, não podendo ser comparadas com as alterações de que o homem é capaz.
À medida que, na escala zoológica, subimos até os mamíferos, percebemos, porém, que as ações animais deixam de ser resultado exclusivo de reflexos e instintos e apresentam uma flexibilidade maior, típica dos atos inteligentes. Ao contrário da rigidez dos instintos, a resposta inteligente a um problema é criativa, improvisada e pessoal.
Todo mundo que tem cachorro em casa gosta de contar inúmeras histórias: como “compreende” ordens, como consegue pegar um osso colocado fora de seu alcance ou, quando é caçador, que artimanhas usa para se apoderar de uma presa. Podemos observar também que alguns cães aprendem mais rapidamente do que outros. Mesmo os que não são submetidos ao adestramento humano agem habilidosamente para conseguir adaptar-se ao ambiente e sobreviver, usando recursos inventivos que não se acham fixados pelo instinto.
Por mais flexível que seja o comportamento desses animais, trata-se, no entanto, de uma inteligência concreta, e, nesse sentido, se distingue da inteligência humana, que é abstrata. Sendo concreta, a inteligência animal é imediata e prática, isto é, depende do momento vivido aqui e agora e tem em vista a resolução imediata de uma situação problemática.
Por exemplo, quando está com fome, um macaco busca o alimento por instinto. No entanto, se o cacho de bananas não se acha acessível, terá que “resolver o problema” de forma satisfatória: se estiver muito alto, poderá alcançá-lo com uma vara ou subir em um caixote.
A diferença do homem, o animal não domina o tempo, porque seu ato se esgota no momento em que o executa. Mesmo quando repete com maior rapidez comportamentos aprendidos anteriormente, o uso do instrumento não remete para o passado nem para o futuro. No exemplo dado, a vara usada pelo macaco sempre volta a ser vara, o que significa que o animal não inventa o instrumento, não o aperfeiçoa nem o conserva para uso posterior. O gesto útil não tem seqüência no tempo e, portanto, não adquire o significado de uma experiência propriamente dita.
3. A experiência humana
Totalmente diversa é a ação do homem sobre a natureza e sobre si mesmo. Ao reproduzir técnicas usadas por outros homens e inventar outras, novas, a ação humana se toma fonte de idéias e por isso uma experiência propriamente dita.
A noção de experiência não se separa do caráter abstrato da inteligência humana, pelo qual pode ser superada a vivência do aqui e agora, passando a existir no tempo. O homem torna-se capaz de lembrar a ação feita no passado e projetar a ação futura, o que é possível pelo fato de representar o mundo por meio do pensamento, expressando-o pela linguagem simbólica.
A linguagem humana substitui as coisas por símbolos, tais como as palavras e os gestos. Por meio de representações mentais e de expressões da linguagem, o homem torna presente, para si e para os outros, os acontecimentos passados, bem como antecipa pelo pensamento o que ainda não ocorreu.
Em uma situação de fome o procedimento humano distingue-se do animal porque faz uso do recurso da linguagem abstrata: a vara para alcançar a fruta não precisa estar presente, mas é representada, isto é, torna-se presente pela palavra. Mais ainda: se o desafio da situação nova ultrapassa os recursos deixados pela tradição, o homem é capaz de, pelo pensamento, antecipar a ação futura, ou seja, inventar um instrumento.
A partir daí concluímos que as diferenças entre o homem e o animal não são apenas de grau, já que, enquanto o animal permanece inserido na natureza, o homem é capaz de transformá-la, tornando assim possível a cultura.
A transformação que o homem faz na natureza chama-se trabalho. O trabalho é a ação transformadora dirigida por finalidades conscientes. Nesse sentido, o castor, quando constrói um dique, ou o joão-de-barro, sua casinha, não estão de fato “trabalhando”, pois esses atos não são deliberados, intencionais, nem movidos por finalidades conscientes, mas sim determinados pelo instinto e idênticos na espécie. Para o homem, ao contrario, o contato com a natureza só é possível quando mediado pelo trabalho.
A cultura é, portanto, o que resulta do trabalho humano: a transformação realizada pelos instrumentos, as idéias que tornam possível essa transformação e os produtos dela resultantes.
Ainda mais: a ação humana transformadora não é solitária, mas social, já que os homens, ao se relacionarem para produzir sua própria existência, desenvolvem condutas sociais, a fim de atender às necessidades do grupo.
4. Cultura e socialização
O processo de socialização se inicia por meio da ação exercida pela comunidade sobre os homens. É conhecida a história das meninas-lobo encontradas na Índia, em 1920, vivendo numa matilha. Seu comportamento em tudo se assemelhava ao dos lobos: andavam de quatro, comiam carne crua ou podre, uivavam à noite, não sabiam rir nem chorar. Só iniciaram o processo de humanização ao conviver com outras pessoas.
O mundo cultural é, dessa forma, um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra um mundo de valores dados, onde ela se situa. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom de voz nas conversas, as relações sociais, tudo, enfim, se acha estabelecido em convenções. Até a emoção, que é uma manifestação espontânea, sujeita-se a regras que dirigem de certa forma a sua expressão. Basta observar como a nossa sociedade, ainda preocupada com uma visão estereotipada da masculinidade, vê com complacência o choro feminino e recrimina a mesma manifestação no homem.
É possível dizer então que a condição humana não resulta da realização hipotética de instintos, mas da assimilação de modelos sociais: o ser do homem se faz mediado pela cultura. Nem o ermitão consegue anular a presença do mundo cultural. A escolha de se afastar faz permanecer o tempo todo, em cada ato seu, a negação e, portanto, a consciência e a lembrança da sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo colocados contra os da sociedade, situam-se também a partir dela. A recusa de se comunicar é ainda um modo de comunicação.
Por isso, a condição humana não apresenta características universais e eternas, pois variam as maneiras pelas quais os homens respondem socialmente aos desafios, a fim de realizar sua existência, sempre historicamente situada.
Uma tendência conservadora, no entanto, leva muitos a definirem sua própria cultura como a correta, estranhando os comportamentos de outros povos ou mesmo de segmentos diferentes em sua própria sociedade. Chegam a achar “naturais” certos atos e valores que se opõem a outros, considerados “exóticos”.
O filósofo Montaigne, no século XVI, ao analisar a perplexidade dos europeus em relação aos costumes dos povos indígenas das terras recém-descobertas, já percebia o teor tendencioso das avaliações: “Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem aqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra”. Mais adiante questiona o horror de muitos diante do relato de canibalismo dos selvagens, quando não causava igual espanto o costume dos religiosos de seu tempo de “esquartejar um homem entre suplícios e tormentos e o queimar aos poucos, ou entregá-lo a cães e porcos, a pretexto de devoção e fé”.
Aceitar as diferenças entre as culturas é importante para evitar o etnocentrismo, isto é, o julgamento de outros padrões (morais, estéticos, políticos, religiosos etc.) a partir de valores do seu próprio grupo. Esse comportamento geralmente leva à xenofobia (horror ao estrangeiro), que é uma forma de preconceito e caminho certo para o exercício da violência, pois a partir dela surgem determinados critérios de superioridade e inferioridade que justificam indevidamente a dominação de um grupo sobre outro.
A transformação produzida pelo homem pode ser caracterizada como um ato de liberdade, entendendo-se liberdade não como alguma coisa que é dada ao homem, mas como o resultado da sua capacidade de compreender o mundo, projetar mudanças e realizar projetos. Pelo trabalho o homem aprende a conhecer as próprias forças e limitações, desenvolve a inteligência, as habilidades, impõe-se uma disciplina, relaciona-se com os companheiros e vive os afetos de toda relação. Nesse sentido, dizemos que o homem se autoproduz, pois ele se modifica e se constrói a partir de sua ação. E nesse movimento tece sua liberdade.
O que foi dito um pouco antes a respeito da ação multiforme dos modelos sociais não contraria a relação estabelecida entre trabalho e liberdade. Isso se explica pelo fato de que, se, por um lado, há sempre a necessidade de um ponto de partida para que cada um possa se compreender – e esse solo é a herança social –, por outro, o ser do homem exige a superação daquilo que ele herda, numa constante recriação da cultura.
5. Sociedade e indivíduo
A natureza modificada pelo trabalho humano não é apenas a do mundo exterior, mas também a da individualidade humana, pois nesse processo o homem se autoproduz, isto é, faz a si mesmo homem.
O autoproduzir-se humano se completa em dois movimentos contraditórios e inseparáveis: por um lado, a sociedade exerce sobre o indivíduo um efeito plasmador, a partir do qual é construída uma determinada visão de mundo; por outro, cada um elabora e interpreta a herança recebida na sua perspectiva pessoal.
É bem verdade que o teor dessas mudanças varia conforme o tipo de sociedade: no mundo contemporâneo de intensa urbanização, as alterações são muito mais velozes do que nas tribos indígenas ou nas comunidades tradicionais. Mesmo assim, não há sociedade estática: em maior ou menor grau, todas mudam, estabelecendo uma dinâmica que resulta do embate entre tradição e ruptura, herança e renovação.
6. As três esferas da cultura
As relações que os homens estabelecem entre si para produzir a cultura se dão em diversos níveis que não se excluem, mas se complementam e se interpenetram. Apenas por questões didáticas costumamos separar e distinguir essas relações em:
• relações de trabalho, que são materiais, produtivas e caracterizadas pelo desenvolvimento das técnicas e atividades econômicas;
• relações políticas, ou seja, as relações de poder, que possibilitam a organização social e a criação das instituições sociais;
• relações culturais ou comunicativas, que resultam da produção e difusão do saber e deveriam pertencer ao âmbito das relações intencionais, reduto da subjetividade.
Nos capítulos que se seguem abordaremos não só as relações entre essas três esferas, como também as formas pelas quais uma pode predominar sobre as outras, produzindo muitas vezes efeitos perversos. Por exemplo, nas sociedades fortemente hierarquizadas e elitizadas, a produção e a difusão da cultura tornam-se restritas, constituindo privilégio de alguns. O mundo do trabalho, por sua vez, também pode extrapolar seus limites, levando seus próprios valores para outros campos estritamente pessoais e afetivos e passando a “colonizá-los” indevidamente: quantos não vêem no casamento uma maneira rendosa de aumentar seu patrimônio?
7. Cultura e educação
Vimos, até aqui, que a cultura é uma criação humana: ao tentar resolver seus problemas, o homem produz os meios para a satisfação de suas necessidades e, com isso, transforma o mundo natural e a si mesmo. Por meio do trabalho instaura relações sociais, cria modelos de comportamento, instituições e saberes.
O aperfeiçoamento dessas atividades, no entanto, só é possível pela transmissão dos conhecimentos adquiridos de uma geração para outra, permitindo a assimilação dos modelos de comportamento valorizados. E a educação que mantém viva a memória de um povo e dá condições para a sua sobrevivência material e espiritual.
A educação é, portanto, fundamental para a socialização do homem e sua humanização. Trata-se de um processo que dura a vida toda e não se restringe à mera continuidade da tradição, pois supõe a possibilidade de rupturas, pelas quais a cultura se renova e o homem faz a história.
Dropes
1
Se o homem não tem oportunidade de desenvolver e enriquecer a linguagem, torna-se incapaz não só de compreender o mundo que o cerca, mas também de agir sobre ele.
Na literatura, é belo (e triste) o exemplo que Graciliano Ramos nos dá com Fabiano, personagem principal de Vidas secas. A pobreza de vocabulário prejudica a tomada de consciência da exploração a que é submetido, e a intuição de sua situação não é suficiente para ajudá-lo a reagir.
Outro exemplo é apresentado pelo escritor inglês George Orwell no seu livro 1984, em que, num mundo do futuro dominado pelo poder totalitário, uma das tentativas de esmagamento da oposição crítica consiste na simplificação do vocabulário levada a efeito pela “Novilíngua”. Nesse processo, toda a gama de sinônimos é reduzida cada vez mais: pobreza no falar, pobreza no pensar, impotência no agir.
Se a palavra, que distingue o homem dos outros seres vivos, se encontra enfraquecida na sua possibilidade de expressão, é o próprio homem que se desumaniza.
2
Você sabe o que é contracultura? É a expressão que designa os diversos movimentos que eclodiram na década de 60, inicialmente nos EUA, espalhando-se em seguida para o resto do mundo.
Esses movimentos reuniram pessoas das mais diversas ideologias, voltadas para a contestação dos valores da sociedade industrial, centrada na tecnocracia e no consumo. A contracultura tem como exemplos o movimento hippie e as “revoluções” estudantis mundiais, cuja expressão máxima foi o “Maio de 68” na França.
A transformação das pessoas em animais como castigo é um tema constante dos contos infantis de todas as nações. Estar encantado no corpo de um animal equivale a uma condenação. Para as crianças e os diferentes povos, a idéia de semelhantes metamorfoses é imediatamente compreensível e familiar. Também a crença na transmigração das almas, nas mais antigas culturas, considera a figura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no olhar do tigre dá testemunho do mesmo horror que as pessoas receavam nessa transformação. Todo animal recorda uma desgraça infinita ocorrida em tempos primitivos. O conto infantil exprime o pressentimento das pessoas. (Ador-no e Horkheimer)