As relações de poder


ARANHA, Maria Lúcia de Arruda. Filosofia da Educação. SP: Moderna, 1997.

As relações de poder

A gente fica pensando: o que é que a escola ensina, meu Deus? Sabe? Tem vez que eu penso que pros pobres a escola ensina o mundo como ele não é.  (Fala do lavrador mineiro “Cico”, segundo Carlos Rodrigues Brandão)

1. A política
Quando falamos em política, é comum as pessoas imaginarem um espaço externo à sua vida cotidiana e que diz respeito ao Estado e aos políticos profissionais que estariam encarregados das decisões relativas à administração da cidade.
Essa imagem da política é, no entanto, típica das sociedades autoritárias, em que as pessoas estão acostumadas a ser tuteladas e a não interferir de maneira eficaz nos rumos da coletividade. Tanto isso é verdade que muitos consideram que apenas certas pessoas estão investidas de poder (têm capacidade de agir, de produzir efeitos) e, por isso, decidem, mandam, restando à maioria apenas a obediência.
Ora, o poder não é uma coisa que se tem, mas uma relação ou um conjunto de relações por meio das quais indivíduos ou grupos interferem na atividade de outros indivíduos ou grupos. E uma relação porque ninguém tem poder, mas e dele investido por outro: trata-se de uma ação bilateral.
Nesse sentido, todos nos, como cidadãos, ou seja, pertencentes à cidade, deveríamos ter o direito (e o dever!) de participar do jogo político, tomando conhecimento dele (não permanecendo alienados), vigiando para não haver abuso do poder e buscando formas de interferir nas decisões. Em outras palavras, os cidadãos também têm poder e devem aprender a exercê-lo. A verdadeira democracia é de fato uma policracia (de poly, muito, e cracia, poder) porque nela o poder não está centrado em um indivíduo nem em uma classe dirigente, mas distribuído em inúmeros focos de poder. Só assim é possível gerar uma sociedade pluralista e transparente, aberta às discussões, ao conflito de opiniões, e em que se aceitam pensamentos divergentes.
Talvez você acredite que isso pode gerar uma confusão total, em que ninguém se entenderia. Ao contrário, é preciso partir da idéia de que a educação para a cidadania dá destaque ao interesse público e à convivência em grupo. Assim, o principal instrumento de disputa do cidadão passa a ser não mais a violência, mas as palavras, o discurso fundado nas artes da persuasão, buscando o consenso.
Evidentemente, chegar a esse estágio não é fácil: a democracia exige longo aprendizado e se sujeita a percalços de toda espécie. Veja-se, por exemplo, o caminho percorrido pelos brasileiros na década de 90. Mal refeitos de um longo período de ditadura, caracterizado pela censura e pela perseguição aos dissidentes (com prisões, tortura e morte), enfrentamos os escândalos do governo Collor sem passividade. Ao contrário, a imprensa, os órgãos de defesa da cidadania, a Igreja, toda a sociedade civil se uniu na mesma indignação e acompanhou (e exigiu) que fosse feita justiça. O impeachment do presidente foi um ato decidido pelos políticos do Congresso, legítimos representantes dos cidadãos, escolhidos por votação, mas sem dúvida a atuação popular influenciou a decisão final.
Depois disso, em inúmeras situações, igualmente se fez sentir a participação da sociedade civil: nos escândalos da comissão do orçamento, na exigência de lisura e transparência quanto à origem das verbas de campanha eleitoral, na necessidade de controle da destinação do dinheiro público, e assim por diante.
O saldo político dessas interferências tem sido sem dúvida positivo, apesar das “idas e vindas” do processo. Embora nem sempre se tenha conseguido atingir os objetivos buscados, é importante saber que os cidadãos não assistem passivamente à corrupção e à dilapidação do patrimônio público, e um número cada vez maior de pessoas começa a exigir “ética na política”.

2. Diversos sentidos de ideologia
O que percebemos com tudo isso é que a política, embora não se confunda com as atividades do homem comum (na vida familiar, no trabalho, no lazer etc.), na verdade permeia todas as atividades humanas o tempo todo. E, se não estivermos atentos e acreditarmos que podemos permanecer apolíticos, isto é, à margem das decisões, certamente nos tornaremos vítimas passivas da ação dos maus políticos.
A pretensa neutralidade justifica a política vigente. O homem despolitizado compreende mal o mundo em que vive e é manipulado por aqueles que estão no poder. Pois, se ocupam o poder à revelia dos interesses da maioria e podem nele se manter pela força, outras vezes o recurso usado é mais sutil e a submissão é conseguida pelo consentimento.
Nas sociedades divididas, os grupos privilegiados predominam sobre os demais e geralmente se mantém pelo prestígio, isto é, seus valores são aceitos, dando a aparência de que se vive em uma sociedade una e harmônica, movida por interesses comuns e não-divergentes.
No entanto, há uma diferença entre o consenso obtido após discussão e exposição das divergências, típico da democracia, e o consentimento que resulta da ignorância dessas diferenças. Neste último caso, estamos nos referindo a uma das formas perversas de exercício do poder, que é a ideologia.
Há vários significados para a palavra ideologia. Em sentido amplo, é o conjunto de idéias, concepções ou opiniões sobre algum ponto sujeito a discussão. E uma teoria, uma organização sistemática dos conhecimentos destinados a orientar a prática, a ação efetiva. Nesse sentido, cada um tem uma ideologia que o ajuda a decidir, por exemplo, onde estudar, que profissão escolher e a respeito do que é certo ou errado.
Sob esse mesmo aspecto, ao analisar a ideologia a respeito das concepções políticas, as pessoas podem ser classificadas conforme suas adesões a um ou outro partido. A ideologia é uma espécie de “cimento” que une as pessoas de determinado grupo, fazendo-as defender interesses comuns e elaborar projetos de ação. E, se toda sociedade é plural, seria saudável que fosse permeada por concepções de mundo diferentes. Esse pluralismo tão enriquecedor não deveria ser cerceado em nome dos interesses de grupos divergentes.
É bom lembrar o que foi dito no início do capítulo: a essência da democracia está na tolerância, que permite a coexistência de ideologias diferentes. Quando não se aceitam os conflitos de idéias, está-se a um passo da violência.
Foi assim no período da ditadura, quando órgãos como o DEOPS (Departamento Estadual de Ordem Política e Social) exigiam “atestados ideológicos, a fim de verificar se não se estava diante de adeptos da ideologia marxista, considerada na época “perigosa à segurança nacional”. Conforme o resultado, as pessoas eram consideradas “subversivas. Há ainda um outro sentido para ideologia, no qual se enfatiza o aspecto pejorativo, isto é, a ideologia como conjunto de idéias e concepções sem fundamento, mera análise ou discussão oca de idéias abstratas que não correspondem a tatos reais.

3. Um conceito restrito de ideologia
O conceito de ideologia, utilizado neste capítulo foi inicialmente elaborado pelo filósofo e cientista social Karl Marx, que viveu no século XIX. Atualmente este conceito está incorporado ao pensamento político e econômico, sendo utilizado até por teóricos não-marxistas, tal a sua fecundidade na compreensão das relações de poder.
Para Marx, as idéias e normas de ação que permeiam a sociedade são decorrentes da economia, isto é, resultam da maneira pela qual os homens se relacionam para produzir sua existência. Com isso, ele contraria a concepção vigente de que “as idéias movem o mundo” e que “os grandes homens fazem a história”. Para Marx, o movimento da história se faz a partir das contradições existentes no seio da sociedade.
Invertendo o processo, Marx considera que as idéias derivam das condições históricas reais vividas pelos homens ao estabelecerem as relações de produção, isto é, ao se organizarem por meio da divisão social do trabalho. Segundo ele, toda atividade intelectual (mito, religião, moral, filosofia, literatura, ciência etc.) e todas as normas (morais, jurídicas etc.) passam a ser compreendidas como derivadas das condições materiais de produção da existência.
Para exemplificar: a moral e o direito feudais podem ser compreendidos a partir do modo de produção feudal; por sua vez, ao instaurar o capitalismo, a burguesia passará a defender valores morais e normas jurídicas diferentes daqueles da nobreza feudal, buscando novos modelos teóricos que justifiquem sua ação.
Ora, a aceitação da transformação social seria relativamente fácil caso as novas idéias, decorrentes das mudanças econômicas, fossem lentamente assimiladas. Mas isso significa superar os antigos valores, o que acarretaria a perda dos privilégios da classe que se encontra no poder. Por isso ela luta ainda durante muito tempo para manter seus valores, como se eles fossem eternos e imutáveis. No período de reação ao novo, o segmento que deseja manter o status quo assume atitudes conservadoras ou reacionárias, em oposição ao grupo progressista.
Assim, durante séculos, a burguesia lutou contra o feudalismo até conseguir superá-lo, utilizando-se, no final o processo, do recurso da revolução (por exemplo a Revolução Gloriosa, na Inglaterra, e a Revolução Francesa). A partir de então, consolidada sua hegemonia, a própria burguesia universaliza seus valores, considerando as idéias defendidas por sua classe válidas para todos os segmentos sociais.
Os ideais de “igualdade, liberdade e fraternidade” da Revolução Francesa, no entanto, não foram estendidos aos trabalhadores, que enfrentavam situações cada vez mais difíceis de sobrevivência. No século XIX, a jornada de trabalho era de 14 a 16 horas, em locais muitas vezes insalubres.
Atualmente, embora tenham ocorrido melhoras como resultado das conquistas sindicais, persiste o fenômeno da alienação (ao qual já nos referimos no Texto 2), agravado por problemas tais como o parcelamento do trabalho e a exclusão do acesso aos bens produzidos. No mundo do capital, o produto é sempre mais importante do que o homem, sendo ele desumanizado, tornado coisa, “coisificado”.

4. Função da ideologia
No entanto, nem sempre o trabalhador tem clareza da situação na qual se encontra, pois a ideologia faz com que não perceba a exploração de que é vítima. A ideologia é o conjunto de representações e idéias, bem como de normas de conduta, por meio das quais o homem é levado a pensar, sentir e agir de uma determinada maneira, considerada por ele correta e “natural”.
Assim, não percebe que essas representações e normas convêm à classe que detém o poder na sociedade. Essa percepção da realidade é ilusória, na medida em que camufla a divisão existente dentro da sociedade, apresentando-a una e harmônica, como se todos partilhassem dos mesmos objetivos e ideais.
A função da ideologia é, pois, ocultar as diferenças de classe, facilitando a continuidade da dominação de uma classe sobre outra. A ideologia assegura a coesão entre os homens e a aceitação sem críticas das tarefas mais penosas e pouco recompensadoras, em nome da vontade de Deus”, do “dever moral” ou simplesmente como decorrentes da “ordem natural das coisas”.
É interessante observar que não se trata de uma mentira inventada pelos indivíduos da classe dominante para subjugar a outra classe. Também eles sofrem a influência da ideologia, o que lhes permite exercer como natural sua dominação e considerar universais os valores pertencentes à sua classe. Os missionários que acompanhavam os colonizadores às terras conquistadas, por exemplo, certamente não percebiam o caráter ideológico de sua ação ao implantar uma religião e uma moral estranhas às do povo dominado. Ao contrario, estavam convencidos do valor dessa tarefa.

5. Características da ideologia
Ouvimos com freqüência a frase “O trabalho dignifica o homem”. E bom lembrar que a afirmação não é falsa, pois, como vimos nos capítulos anteriores, o trabalho é de fato o que faz o homem se tornar homem e o distingue do animal, mas soa ideológica quando considerada fora do contexto histórico concreto em que os homens trabalham, mascarando situações de exploração.
O trabalho alienado não dignifica, mas degrada o homem, porque, além de retirar dele o fruto de sua produção, reduz suas possibilidades de crescimento. Quando a característica pervertida do trabalho não é reconhecida, esse ocultamento beneficia não o trabalhador, já prejudicado, mas aqueles que se ocupam com as atividades menos penosas.
Portanto, a frase acima, a princípio verdadeira, pode se tornar ideológica quando ocultar a situação concreta de exploração e descrever uma realidade abstrata, universal, lacunar e invertida.

Explicando melhor, a ideologia tem por características:
•a abstração: na medida em que não se refere ao concreto, mas ao aparecer social. Um exemplo: a “idéia de trabalho” aparece desvirtuada da análise histórica concreta das condições nas quais certos tipos de trabalho brutalizam o homem, em vez de enobrecê-lo (como o operário na linha de montagem);
• a universalização: pela qual as idéias e valores do grupo dominante são estendidos a todos; por exemplo, mesmo tendo interesses divergentes, o empregado adota os valores do patrão como sendo também os seus;
• a lacuna: há “vazios”, “partes silenciadas” que não podem ser ditas, sob pena de desmascarar a ideologia; por exemplo, quando dizemos que o salário paga o trabalho, permanece oculto o fato de que o valor produzido pela força de trabalho é maior do que o recebido, sendo a diferença apropriada pelo capitalista (é o que Marx denominava mais-valia);
• a inversão: ao explicar a realidade, o que é apresentado como causa é na verdade conseqüência; por exemplo, se o filho de um operário não consegue melhorar seu padrão de vida, o insucesso é considerado resultante de sua incompetência, quando na verdade esta é efeito de outras causas, tais como as condições precárias (de saúde, educação etc.) a que se acha submetido: ele joga um “jogo de cartas marcadas”, e as possibilidades de melhora não dependem dele. Dessa forma, a ideologia “naturaliza” a realidade, escondendo o fato de que a existência humana só é produzida pelo próprio homem e só pode ser alterada por ele: não é “natural” que haja ricos e pobres, nem que exista a separação entre trabalho intelectual e braçal, nem que alguns estejam destinados ao mando e outros, à obediência.
A divisão e a hierarquia instauradas na sociedade justificam a priorização das idéias sobre a prática (ao contrário da concepção de práxis, que estabelece uma relação dialética entre elas). Daí decorre a aceitação de que a classe que “sabe pensar” controla as decisões e manda, enquanto a outra “não sabe pensar” e, portanto, executa e obedece.
6. Ideologia e educação
É muito comum se pensar que a educação é apolítica, a escola é um espaço neutro, uma ilha isolada das divergências da sociedade e um canal objetivo de transmissão da cultura universal.
Sem dúvida é uma imagem ilusória. A escola é política e, como tal, reflete inevitavelmente os confrontos de força existentes na sociedade. Se esta se caracteriza por classes antagônicas, a escola certamente refletirá os interesses do grupo dominante. Basta rever a história da educação para perceber como a escola sempre serviu ao poder, não oferecendo oportunidades iguais de estudo a todos, indistintamente. Além disso, a escola transmite padrões de comportamento, bem como idéias e valores. Ora, esses modelos, divulgados como “universais e abstratos”, geralmente não são tão universais assim, pertencendo a um determinado segmento social.
Na década de 70, muitos intelectuais desenvolveram as teorias crítico-reprodutivistas, que denunciam a escola por disseminar a ideologia e reproduzir o status quo. Mesmo não concordando com a radicalidade dessas posições, é preciso reconhecer muitos acertos nas suas análises.
Num rápido esboço do papel ideológico da educação, vamos abordar o problema sob três aspectos: quanto às teorias pedagógicas, quanto ao plano legal e quanto à prática educativa.

Caráter ideológico das teorias pedagógicas
Se levarmos em conta o conceito de práxis, toda teoria se acha indissoluvelmente ligada à prática. Portanto, qualquer teoria da educação deveria partir do exame rigoroso e sistemático dos problemas existentes na realidade, a fim de definir os objetivos e meios que orientarão a atividade comum intencional.
Quando uma teoria pedagógica desenvolve-se à margem dos acontecimentos econômicos, políticos e sociais do seu tempo, corre o risco de tornar-se ideológica. Utilizando conceitos abstratos, eternos e imutáveis, deslocadas da situação histórica em que se inserem, repete artifícios pelos quais os valores dominantes são impostos.
O homem é um ser em processo cujo pensar e agir estão condicionados pela maneira segundo a qual ele produz sua existência, de modo que nenhuma teoria pedagógica pode partir de conceitos dados a priori, ou seja, antes de serem examinadas as condições de sua existência concreta.
Dessa forma, não é possível trabalhar com categorias atemporais, como natureza humana, infância em si ou família em si. Segundo as teorias que partem dessas noções, a educação seria um processo de “atualização” daquilo que o homem possui “em potencial” (o que pode ser, mas ainda não é), donde se conclui que haveria uma essência humana válida em todos os tempos e lugares, cabendo à educação tomar presente, “trazer à tona” o que existe em germe em cada um.
Tal procedimento torna-se ideológico ao desprezar o fato de que a educação é um fenômeno social, não sendo possível separar teoria da educação e realidade social. A sociedade não é um aglomerado de indivíduos, cada um deles “desabrochando”, trazendo à tona o que era “em potência”. A educação promove a construção da personalidade social e, por isso, não se desvincula da situação concreta em que se insere.
Não convém, por exemplo, analisar a crise da adolescência como “natural”, resultante do eterno conflito entre gerações, pois há sociedades nas quais nem sequer existe o fenômeno da adolescência, e outras em que os conflitos são de teor muito diferente: basta comparar o adolescente do campo e o da cidade; o burguês e o proletário; ou ainda o jovem da década de 40 e o dos explosivos anos mutantes de 60!


Legislação e ideologia
É impossível criar uma legislação eficaz para a educação sem ter como suporte uma teoria pedagógica cujo rigor possa superar a compreensão empírica do fenômeno. Apoiando-se nessa teoria, a solução para os problemas surge de forma intencional, coerente e não-fragmentada, ultrapassando o nível prático-utilitário do senso comum.
O professor e educador paulista Dermeval Saviani analisa, em importante trabalho, o caráter precário da Lei de Diretrizes e Bases (LDB/61), decorrente da não utilização de uma teoria que possibilitasse a construção de um verdadeiro sistema educacional brasileiro. [1]
Para Saviani, não podemos falar em sistema educacional brasileiro, e sim em estrutura. A estrutura é caracterizada por ausência de planos, assistematicidade da ação, inexistência de projetos claramente expostos, ou seja, é algo que aí está, que o homem deixou de fazer ou fez sem o saber.
Se não existe uma teoria explícita subjacente, a ação perde a intencionalidade, a unidade e a coerência, mas não deixa de ser orientada pelos valores vigentes, expressos pelos interesses dos grupos dominantes. E eis aí de novo a ação silenciosa da ideologia. Pois o Direito, como toda elaboração da consciência humana, reflete as condições estruturais da sociedade em um determinado movimento histórico, e as leis, sendo feitas pela elite, vêm em defesa dos seus valores.
Por isso, ao examinar o texto de uma lei, é preciso ler nas entrelinhas, analisar o contexto em que se insere, a fim de descobrir as relações de interesse que se acham por trás, no processo da sua gestação.
Voltemos ao exemplo da Lei de Diretrizes e Bases. A partir do primeiro projeto de lei, datado de 1948, esta lei seguiu um longo caminho. Embora fosse inicialmente um texto progressista, foi sancionado apenas em 1961, tornando-se ultrapassado para a época em que entrou em vigor, já que era outra a sociedade brasileira de então. Além disso, a lei refletiu os conflitos entre tendências opostas, sobretudo entre liberais defensores da escola pública e a ala conservadora dos católicos, que reivindicava a subvenção do Estado para a rede particular do ensino. Este mesmo conflito reaparece na discussão da Constituição de 1988, que manteve a destinação dos recursos a certos tipos de instituição.
Se é preciso examinar os interesses subjacentes à elaboração e aprovação de uma lei, também é importante avaliar sua eficácia, pois vários fatores interferem na sua aplicação. Ao ampliam a obrigatoriedade do ensino primário de quatro para oito anos, a LDB não considerou as condições de intra-estrutura existentes, o que não permitiu que este dispositivo da lei saísse do papel.

Prática educativa e ideologia
Dentre os recursos utilizados na prática educativa, vamos destacar o livro didático, que, assim como os outros recursos, não pode ser considerado um veículo neutro, objetivo, mero transmissor de informações. Estudos realizados sobre os livros didáticos de 1o grau1 constatam muitas vezes sua utilização ideológica, sobretudo quando mostram à criança uma realidade estereotipada, idealizada e deformadora.
Os textos ideológicos transmitem uma visão de trabalho que iguala todos os tipos de profissão, ocultando o fato de que muitas pessoas são submetidas a atividades árduas, alienantes. Mostram uma sociedade una e harmônica, na qual cada um cumpre o seu papel como um destino a que não se pode fugir e ao qual se deve conformar. A impressão que se tem é de que a riqueza e a pobreza fazem parte da natureza das coisas, não sendo resultado da ação dos homens. Resta aos pobres a paciência e, aos ricos, a generosidade.
A família, apresentada sem conflitos, aparece com papéis bem definidos: o pai tem a função de provedor; a mãe é a “rainha do lar”; se a criança não for atenciosa e obediente, isso é mostrado como um desvio que precisa ser corrigido; a empregada, geralmente preta, é feliz por ser “quase” alguém da família. “Mundo sem preconceito, em que as raças se irmanam...” Além disso, as situações vividas, bem como o ambiente em que se desenrolam, refletem invariavelmente a realidade de um segmento mais próspero da sociedade, muito diferente do modo de viver da maioria da população escolar, pertencente às classes desfavorecidas.
A pátria merece páginas de ingênua exaltação, sendo retratada como um país ilusório, grande e rico, ou pelo menos “o país do futuro”. Fica por conta do leitor investigar o que é dito, nos livros didáticos, sobre a escola, sobre o trabalho no campo, sobre o índio, sobre a moral etc.
Também a abordagem das disciplinas do currículo adquire, muitas vezes, um caráter ideológico. O ensino de história, por exemplo, torna-se ideológico quando se restringe à seqüência cronológica dos fatos, sem a análise da ação das forças contraditórias que agem na sociedade. A aparente neutralidade e a ausência de interpretação ocultam e impedem a expressão do discurso dos vencidos ou dos dominados. Além disso, é típico desse processo apresentar a história como resultado da ação dos “grandes homens”. Dessa forma, abolição da escravatura é vista sob a ótica dos brancos e os bandeirantes são “heróis” que expandem as fronteiras brasileiras à custa das populações indígenas (aliás, no “faroeste” americano o mocinho não vence sempre os “ferozes” índios?).
A ênfase dada à geografia física, em detrimento da geografia humana, reflete a preocupação positivista, que despreza o fato de ser o homem o construtor do seu habitat. Com isso se oculta que a ação exercida sobre a natureza significa também uma ação sobre os homens, o que recoloca a questão do poder e do controle político do espaço geográfico.
Tomamos apenas os exemplos da história e da geografia, mas uma análise deste tipo pode ser feita com relação a qualquer disciplina do currículo.
Embora não tenham necessariamente objetivo didático, os livros de literatura infantil, são utilizados com freqüência em sala de aula, como auxiliares no processo de aprendizagem. É muito comum encontrarmos viés ideológico nessa produção, preocupada com o enquadramento da criança nos padrões convencionais de comportamento, do que decorre o caráter moralizante do seu conteúdo.
Além disso, existe o reforço dos preconceitos com relação ao negro, ao índio, à mulher e à criança, mostrados como seres passivos e necessitados de orientação e controle externos.
A organização escolar pode exercer um papel ideológico na medida em que a rígida hierarquia exige o exercício do autoritarismo e da disciplina estéril, que educam para a passividade e a obediência. A excessiva burocratização desenvolve o “ritual de domesticação”, que vai desde o controle da presença em sala de aula, às provas, até a obtenção do diploma. Se lembrarmos o que foi dito no item anterior sobre estrutura e sistema, é fácil compreender que qualquer organização só tem sentido enquanto mantiver viva a reflexão sobre os objetivos que orientam sua ação. Caso contrário, degenera em exigência puramente formal. E o formalismo da prática gera a burocracia estéril e autoritária.

7. A contra-ideologia
Se considerássemos apenas o que foi dito até agora, restaria uma visão pessimista da educação e uma nítida sensação de impotência diante dessa situação. É preciso superar essa posição imobilista. Para isso, vamos explicitar o que seria um discurso não-ideológico.
Retomemos os conceitos analisados no início do capítulo: o discurso ideológico é abstrato e lacunar, faz uma análise invertida da realidade e separa o pensar e o agir, a fim de manter privilégios e a dominação de uma classe sobre outra. O discurso não-ideológico deve contrapor, então, uma crítica que revele, denuncie a contradição interna, que se acha oculta. É esse o papel da teoria, que não se confunde com a ideologia, pois está encarregada de desvendar os processos reais e históricos que dão origem à dominação, enquanto a ideologia visa justamente ocultá-la.
A teoria estabelece uma relação dialética com a prática, uma relação de reciprocidade e simultaneidade, não uma relação hierárquica, como no discurso ideológico, que considera a teoria superior e anterior à prática.
Aplicando o conceito de dialética à educação, podemos ver que uma teoria educacional não determina autoritariamente e a priori o que deve ser feito, mas parte da análise dos fatos e deve para eles retornar, a fim de agir sobre eles, mantendo viva a relação entre o pensar e o agir. Por isso, toda teoria educacional autêntica vem sempre acompanhada de forma reflexiva e crítica pela filosofia, cuja função é “explicitar os seus fundamentos, esclarecer a função e a contribuição das diversas disciplinas pedagógicas e avaliar o significado das soluções escolhidas”[2]. O papel da filosofia como crítica da ideologia é importante, pois rompe as estruturas petrificadas que justificam as formas de dominação.
Nessa perspectiva, a escola não é compreendida como isolada da realidade nem como pura reprodução da realidade social. E, se a escola não é a alavanca transformadora da realidade, como pensavam os escolanovistas, tampouco é totalmente manipulada pelo poder, como pensavam os crítico-reprodutivistas. É preciso descobrir, a partir de suas limitações, as reais possibilidades de transformação qualitativa da escola, a fim de que ela possa desenvolver um discurso contra-ideológico.

8. Educar para a cidadania
Como proceder a essa mudança, tendo em vista inúmeras dificuldades e entraves?
A tarefa é árdua, mas não impossível. Sem dúvida exige tempo, paciência e um esforço contínuo levado a efeito em inúmeros setores diferentes: que se abram “ágoras” de discussão, espaços de expressão que funcionem como microrrevoluções.
A salutar exigência de ética na política deve, por coerência, se estender às relações de trabalho, à vida familiar e ao lazer, não apenas enquanto discussão, mas também na busca de formas de atuação.
Afinal, dissemos que democracia é policracia: pois que aumentem os focos nos quais possamos exercer nossa cidadania.
Sem dúvida, precisamos exigir do Estado o cumprimento de suas obrigações, bem como vigiar sua execução. Mas isso não é suficiente. E revelador de uma tendência paternalista permanecer na dependência exclusiva da boa vontade e da ação dos governos. Até porque a alternância freqüente daqueles que são eleitos para ocupar os cargos públicos gera constantes mudanças de orientação ideológica, tornando caótica a administração pública.
As organizações de pais, de mestres, de alunos, os sindicatos, ou seja, os agrupamentos progressistas saídos da sociedade civil é que poderão exercer uma vigilância e fazer pressão para que a escola se transforme em um espaço de mudança. Mesmo que nessa situação existam contradições, pois na sociedade civil também se organizam grupos retrógrados e conservadores, que tentam manter a ordem vigente – e, portanto, a ideologia –, é estimulante o exercício do poder disseminado entre os cidadãos.
Nessa linha de atuação têm se destacado no mundo inteiro as chamadas organizações não governamentais (ONGs), responsáveis por significativas mudanças em diversos setores, tais como o recuo na construção de usinas atômicas, a revisão do processo de construção de grandes usinas hidrelétricas, que provocam graves prejuízos ecológicos, bem como na luta pelos direitos humanos, contra o arbítrio do poder, e assim por diante. No Brasil, surgiram durante o movimento contra a ditadura militar e têm provocado a conscientização e a mobilização dos cidadãos.
Na educação há muito que fazer. Temos de lutar por êxitos parciais que, no conjunto, se tornem significativos: adequada aplicação das verbas públicas, melhor formação de professores competentes e politizados, remuneração condigna do corpo docente, escolas bem equipadas, classes pouco numerosas, desmistificação na abordagem das disciplinas, leitura crítica dos textos e do próprio mundo.
Questões
1. Explique por que o poder não é algo que se tem, mas uma relação.
2. O que é ideologia e qual a sua função?
3. Em que sentido a teoria se distingue da ideologia? Como cada uma delas se relaciona com a prática?
4. O que é necessário para que uma teoria pedagógica não seja ideológica?
5. Explique por que o conteúdo das frases a seguir é ideológico. Faça referência a características da ideologia, a fim de fundamentar sua resposta.
• A educação é um direito de todos.
• Isto é legal, portanto justo e legítimo.
6. Como é possível superar o destino da escola de ser simples reprodutora do sistema?


[1] Educação brasileira; estrutura e sistema.

[2] Dermeval Saviani, Educação: do senso comum à consciência filosófica, p. 30